Aliança Conjugal. Os fundamentos bíblicos da família

Fonte: Canonicum
No dia 17 de Abril de 2015, a Vigararia Judicial da Diocese de Lamego organizou uma Jornada Jurídico-Pastoral, que decorreu no Seminário Maior de Lamego. Nessa ocasião, o Sr. D. António Couto, Bispo de Lamego, interveio sobre “Matrimónio e Família: aspectos bíblicos”. Em seguida, apresentamos o texto que serviu de base à sua intervenção, publicado, em parte, na Revista Família Cristã.
Por Sr. D. António Couto

Dada a delicadeza, a turbulência e a ambivalência que habitualmente afetam esta temática, começo por expor dois textos do Evangelho de Jesus diante de nós, simplesmente para os podermos ver, olhos nos olhos, sem preconceitos ou prejuízos. Trata-se dos textos fundamentais de Marcos 10,2-12 e Mateus 19,3-11. Passaremos depois os olhos pelo maravilhoso painel que São Paulo nos oferece em 1 Coríntios 7.
Comecemos por expor Marcos 10,2-12, expondo-nos nós também a ele:
«10,2E tendo-se aproximado os FARISEUS, perguntavam-lhe, para o pôr à prova (peirázô), se é lícito (éxestin) a um homem (anêr) repudiar (apolýô) a mulher. 3Então, ele, respondendo, disse-lhes: “O que é que vos ordenou(entéllomai) Moisés?”. 4Eles disseram: “Moisés permitiu (epitrépô) escrever uma ata de divórcio (biblíon apostasíou), e repudiar (apolýô)”. 5Jesus disse-lhes: “foi pela dureza do vosso coração (sklêrokardía), que escreveu para vós estemandamento (entolê). 6Mas, no princípio da criação, macho e fêmea os fez. 7Por causa disto, o homem (ánthrôpos) deixará o seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, 8e serão os dois uma só carne, pois não são mais dois, mas uma só carne. 9Então o que Deus uniu, o homem (ánthrôpos) não separe”.
10E, de novo em casa, os DISCÍPULOS interrogavam-no acerca disto. 11E diz-lhes: “Aquele que repudiar (apolýô) a sua mulher e desposar outra, comete adultério (moicháomai) para com ela. 12E se ela, tendo repudiado (apolýô) o seu marido, desposar outro, comete adultério (moicháomai)”» (Marcos 10,2-12).
  1. Entram uma vez mais em cena os fariseus. Como em outras ocasiões, querem «pôr Jesus à prova» (cf. 8,11; 12,15). Fazem-lhe, para isso, uma pergunta potencialmente explosiva. O assunto é «se é lícito (éxestin) ao homem repudiar (apolýô) a sua mulher». A pergunta é uma armadilha, por mais de uma razão. Primeiro, porque este modo de fazer era já usual entre os judeus. Se Jesus desse uma resposta negativa, corria o risco de provocar um alvoroço entre os homens que o ouviam. Segundo, porque podia acentuar o conflito com Herodes Antipas, que já tinha feito prender João Baptista, por este ter protestado contra a sua relação irregular com Herodíades (Marcos 6,18). Terceiro, porque se Jesus desse uma resposta positiva, corria o risco de entrar numa discussão académica interminável e inútil, pois eram conhecidas interpretações diversas, entre o rigorismo e o laxismo. Por exemplo, a escola rigorista de Shammai era de opinião que a separação só devia ser permitida em caso de adultério, enquanto que a escola liberal de Hillel achava que a separação era permitida por tudo e por nada. Bastava, por exemplo, que a mulher deixasse queimar a comida, saísse de casa sem o véu, fosse encontrada a falar com um desconhecido, e até o simples facto de o marido ter encontrado outra mais bonita.
  1. Portanto, Jesus não se deixa apanhar na armadilha, e pergunta, por sua vez, aos fariseus: «O que é que vos ordenou Moisés?». Eles tiveram de responder: «Moisés permitiu escrever uma ata de divórcio e repudiar». Os fariseus estão a citar o Livro do Deuteronómio 24,1, e vê-se que interpretavam esta prescrição de Moisés como permissão do divórcio. De onde se deduzia que os homens (só os homens) têm o direito de repudiar as suas mulheres, direito a que as mulheres não tinham direito, pois não podiam separar-se dos seus maridos. Ouvida esta resposta, já esperada, Jesus entra então na argumentação a sério, referindo que Moisés não permitiu o divórcio, mas apenas quis remediar e pôr ordem e humanidade numa situação que os homens tinham criado, e que gerava muitas complicações. Na verdade, a mulher repudiada pelo marido, se o divórcio não fosse devidamente documentado, continuava ligada ao seu anterior marido, e não ficava livre para se voltar a casar ou não; podia, além disso, ser vista como uma mulher casada em fuga, e, caso se viesse a ligar a outro homem, podia ser acusada de adultério e ser condenada à morte por lapidação (cf. Deuteronómio 22,22).
  1. Tirado isto a limpo, percebe-se então que Moisés não permitiu o divórcio. Permitiu foi que se passasse ata de divórcio à mulher. Portanto, Moisés constatou a existência da triste e dura realidade do divórcio que deixava a mulher desprotegida, e, para remediar essa situação, permitiu ou ordenou que se escrevesse uma ata de divórcio. Aos fariseus, Jesus declara então que esta prescrição de Moisés não se destina a permitir o divórcio, mas a pôr os necessários limites à «dureza do coração» ou «esclerose do coração», a famosasklêrokardía dos homens, que é a verdadeira responsável pelo divórcio. Esclarecido então o alcance da prescrição de Moisés, meramente corretiva de uma situação que a «esclerose do coração» dos homens criou, e que, lendo bem o Livro do Deuteronómio 10,12-22, significa o fechamento do homem a Deus, à sua bondade, à sua grandeza e à sua vontade (ver a expressão em Deuteronómio 10,16 e Jeremias 4,4), Jesus passa logo a expor a vontade de Deus sobre o casal humano, como se pode ver lendo os relatos da criação: «Deus os fez homem e mulher» (Génesis 1,27); «o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne» (Génesis 2,24). E conclui: «Não separe o homem o que Deus uniu».
  1. Depois, em casa, lugar da intimidade, Jesus explica aos seus DISCÍPULOS que tanto incorre em adultério o homem como a mulher que abandonam os respetivos cônjuges e casam com outros. Com este dizer, alargado à mulher, Jesus estende o bisturi também à nossa sklêrokardía. De facto, aos FARISEUSJesus apenas falou do homem que repudia a sua mulher e casa com outra, porque, em mundo judaico, não era permitido à mulher repudiar o marido, para casar com outro. Era, porém, permitido em mundo greco-romano, e é-o no nosso. E Marcos escreve o seu Evangelho provavelmente em Roma, no meio do mundo, e põe Jesus a ensinar esta verdade aos seus discípulos, de acordo com a realidade em que viviam. Em que vivemos.
Expomos agora Mateus 19,3-11, e nós também a ele:
«19,3E aproximaram-se dele os fariseus, pondo-o à prova (peirázô), dizendo: “É lícito (éxestin) ao homem repudiar (apolýô) a sua mulher por qualquer motivo?”.4Então, ele, respondendo, disse: “Não lestes que o Criador, no princípio, os fez macho e fêmea, 5e disse: por isto, o homem (ánthrôpos) deixará o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e serão os dois uma só carne. 6De modo que já não são dois, mas uma só carne. Então, o que Deus uniu, não separe o homem (ánthrôpos)”. 7Dizem-lhe: “Por que é que, então, Moisés ordenou (entéllomai) dar ata de divórcio (biblíon apostasíou) e repudiar (apolýô)?”. 8Diz-lhes: “Por causa da dureza do vosso coração (sklêrokardía), Moisés permitiu-vos (epitrépô) repudiar (apolýô) as vossas mulheres, mas no princípio não era assim. 9Digo-vos, pois, que aquele que repudiar (apolýô) a sua mulher, a não ser em caso de relação sexual extraconjugal (porneía), e despose outra, comete adultério (moicháomai)”.
10Dizem-lhe os seus discípulos: “Se é essa a condição do homem (ánthrôpos) acerca da mulher, não é conveniente casar-se”. 11Então ele disse-lhes: “Nem todos compreendem esta palavra, mas só aqueles a quem é dado…”» (Mateus 19,3-11).
  1. Movem os fariseus as mesmas intenções que encontrámos já no texto de Marcos (acima, ponto 1.). A questão agora posta a Jesus contém, todavia, um dado novo. Aquele por qualquer motivo, que agora se lê no final do texto de Mateus, não constava no texto de Marcos, onde os fariseus apenas desejavam saber de Jesus se era lícito ao homem repudiar a sua mulher. Este por qualquer motivo empresta ao texto de Mateus uma nova perspetiva, fazendo-nos entrar no terreno movediço da discussão académica interminável e indolor. Vê-se bem que a formulação da pergunta deixa logo de lado o único motivo requerido por Shammai, o adultério, e deixa-nos à porta da escola liberal de Hillel que, como já vimos atrás (acima, ponto 1.), permitia o divórcio por qualquer motivo ou por um motivo qualquer ou mesmo por motivo nenhum, banalizando por completo a condição da mulher.
  1. Também aqui Jesus não cai na trápola que lhe é montada, e remete logo os fariseus para o princípio, para leitura dos relatos da criação, expondo diante deles a vontade boa do Criador: «Deus os fez homem e mulher» (Génesis 1,27); «o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne» (Génesis 2,24). Da sua lavra é apenas a conclusão taxativa, que soa: «Não separe o homem o que Deus uniu» (acima, ponto 3.).
  1. Os fariseus percebem bem (porque sabiam ler, e já tinham lido) o alcance da resposta de Jesus assente em terreno firme, e não discutível, mas não desarmam, e avançam uma segunda pergunta (em Marcos só formulam a primeira): «Por que é que, então, Moisés ordenou dar ata de divórcio e repudiar?». Tal como está formulada, a pergunta dos fariseus já contém a resposta. Lá está a ata de divórcio, medida humanitária de Moisés, para remediar o mal provocado por um divórcio unilateral avançado pelos homens, de forma leviana e insensível. Dada a resposta posta pelos próprios fariseus, Jesus apenas aproveita o trampolim para dizer que sim, que não foi Moisés que fez o divórcio, mas a sklêrokardía do empedrado e asfaltado coração dos homens (acima, ponto 3.).
  1. A conclusão de Jesus, em Mateus exposta perante os fariseus, aparece no texto de Marcos exposta diante dos discípulos: quem repudiar a sua mulher e desposar outra, comete adultério. Todavia, a formulação do texto de Mateus, diferentemente de Marcos, abre uma exceção: a não ser em caso de relação sexual extraconjugal. Este dizer pretende traduzir, neste contexto, o termo grego porneía que, em outros contextos, cobre um âmbito mais alargado de comportamento sexual irregular. Neste contexto concreto da relação conjugal, impõe-se, porém, este âmbito restrito, habitualmente vertido pelo termo grego moicheía.
  1. Como acabámos de ver, em relação ao texto de Marcos, Mateus abre uma exceção, mas mantém-se firme sobre terreno judaico: só o homem pode repudiar a mulher. Marcos não abre qualquer exceção, mas põe o ato de repudiar em paridade para os dois sexos. Em Mateus este último dito de Jesus é proferido perante os fariseus. Em Marcos, trata-se de um ensinamento de Jesus aos seus discípulos.
  1. De forma grandemente significativa, quer Mateus quer Marcos fazem suceder a este episódio acerca do divórcio a cena das crianças repelidas ou repreendidas pelos discípulos, mas acolhidas, abraçadas e abençoadas por Jesus (Mateus 19,13-15; Marcos 10,13-16). Oportunidade para Jesus nos mostrar que é necessário romper a crosta da nossa importância, que nos separa de Deus e dos pequeninos. Também aqui se trata de sklêrokardía. Em boa verdade, envoltos na crosta da nossa importância, já não sabemos receber. E o Reino de Deus não é para comprar ou conquistar, mas unicamente para receber. Daí a importância das crianças para Jesus. Não é a sua inocência e candura que aqui é salientada, mas o facto de serem dependentes e confiantes.
 Expomos agora e expomo-nos agora à riqueza e à beleza e, talvez também à surpresa, das instruções de São Paulo em 1 Coríntios 7, um texto único no seu género. Neste imenso texto, São Paulo oferece-nos uma extraordinária reflexão sobre a vida conjugal e a vida virginal e celibatária à luz de Cristo. Em jeito de quem responde, mas de forma bem articulada, a uma série de questões postas pelos cristãos de Corinto, divididos entre a proverbial imoralidade da cidade e o puritanismo escrupuloso proposto como reação por alguns, Paulo trata neste Capítulo: a) dos direitos e dos deveres dos esposos, marido e mulher, de uma forma revolucionariamente paralela; b) da relação da vida matrimonial e da vida celibatária «no Senhor». No que se refere à questão dos direitos e deveres dos esposos, Paulo coloca marido e mulher em situação de perfeita igualdade. A intenção paulina manifesta-se limpidamente numa série de 10 enunciados absolutamente paralelos, que a seguir apresentamos:
I. «Cada um (hékastos) a sua mulher tenha» // «Cada uma (hekástê) o seu próprio marido tenha» (1 Cor 7,2).
II. «Para com a mulher, o marido a dívida conjugal (opheilê) cumpra» // «Da mesma forma (homoíôs), a mulher para com o marido» (1 Cor 7,3).
III. «A mulher sobre o seu próprio corpo não tem poder (ouk exousiázô), mas sim o marido» // «Da mesma forma (homoíôs), o homem sobre o seu próprio corpo não tem poder, mas sim a mulher» (1 Cor 7,4).
IV. «Não vos recuseis um ao outro (allêlous), a não ser de comum acordo (sýmphônos), por tempo limitado, para vos entregardes à oração, e de novo juntai-vos…» (1 Cor 7,5).
V. «A mulher do marido não se separe (chôrízô); se, porém, se vier a separar, não se volte a casar ou com o marido se reconcilie» // «e o homem a mulher não repudie (aphíêmi)” (1 Cor 7,10-11).
VI. «Se um irmão (adelphós) uma mulher tem não-cristã (ápiston = sem fé), e esta consente em habitar com ele, não a repudie» // «e se uma mulher tem um marido não-cristão (ápiston = sem fé), e este consente em habitar com ela, não repudie o marido» (1 Cor 7,12b-13).
VII. «Na verdade, é santificado o marido não-cristão pela mulher» // «e é santificada a mulher não-cristã pelo irmão (adelphós)» (1 Cor 7,14a).
VIII. «Se o não-cristão (ho ápistos), ele ou ela, quer separar-se, que se separe; não estão obrigados, o irmão ou a irmã, em tais casos» (1 Cor 7,15).
IX. «Que sabes tu, mulher, se salvarás o teu marido?» // «E que sabes tu, marido, se salvarás a tua mulher?» (1 Cor 7,16).
X. «O que não é casado (ho ágamos), cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor; mas o que se casou (ho dè gamêsas), cuida das coisas do mundo, de como agradar à mulher». // «E a mulher não-casada (hê gynê hê ágamos) e a virgem cuida das coisas do Senhor; mas a que se casou (hê dè gamêsasa) cuida das coisas do mundo, de como agradar ao marido» (1 Cor 7,32b-34).
Os 10 enunciados que acabámos de enumerar são absolutamente revolucionários para a época, quer em mundo greco-romano quer em mundo judaico, pois conferem aos dois sexos as mesmas possibilidades e oportunidades nos diversos domínios referidos: a) o acordo comum e deliberado na vida conjugal, nomeadamente no que concerne ao exercício da união sexual e da continência (enunciados I-IV); b) a mesma situação e igual dignidade no domínio religioso (enunciados IV.VII.IX); c) os mesmos direitos perante o divórcio (enunciado V); d) igual tratamento na questão dos matrimónios mistos e do chamado «privilégio paulino» (enunciados VI-VIII).
É ainda grandemente significativo para o contexto sócio cultural da época que, para além da paridade referida dentro da instituição matrimonial, São Paulo reconheça ainda à mulher em qualquer outro estado, virgem (1 Cor 7,28), viúva (1 Cor 7,39), pagã cujo marido se tornou cristão (1 Cor 7,12.15), o pleno direito de dispor da sua vida, uma vez mais em plena paridade com a parte masculina.
Ao ler e reler este imenso texto, tomamos consciência da grandeza de São Paulo, e não podemos senão ficar espantados ao verificar a maneira maravilhosa como ele soube levar a enxurrada do Evangelho para a vida concreta do mundo de então em que lhe foi dada a graça de viver.
Dezembro de 2015

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