Reflexões do Papa Pio XII sobre a dignidade do matrimônio, indissolubilidade, nulidade e muito mais.
Recomendo o livro "Casamento e família", uma preciosa obra do Papa Pio XII, onde ele nos deixou
valiosos ensiamentos no campo matrimonial que perpassam pelo direito canônico, pela moral, pela catequese, pela liturgia.
Compartilho com o leitor o Capíturo XVII, onde o Santo Padre reflete sobre a dignidade do matrimônio.
Capítulo XVII
A dignidade do matrimônio
Não vos será difícil, caros esposos, elevar o espírito e ter
uma alta concepção da vida conjugal que iniciastes, se considerais atentamente –
com a ajuda dos missais – as comovedoras cerimônias das núpcias, nas quais a
sagrada liturgia está toda resumida num só ponto: no laço que a partir daquele
instante une o esposo à esposa. Que doces pensamentos, que alegria vos
acompanhou ao santo altar! Que esperanças e ditosas visões vos conduziram os
passos! Mas aquele laço é uno e indissolúvel: Ego conjugo vos, “Eu vos uno em nome de Deus”, disse o sacerdote,
testemunha qualificada da união que realizastes; e a Igreja tomou sob sua proteção
e tutela o vínculo eu contraístes, com a consagração e a força de um
sacramento, escrevendo vossos nomes no grande livro dos matrimônios cristãos,
enquanto que, como conclusão do rito nupcial, havia dirigido a Deus a
invocação: ut quod te autoctore
junguntur, te auxiliante serventur, “para aqueles que com vossa autoridade
se unem, com vossa ajuda se salvem”.
O que Deus uniu
O vínculo conjugal é uno. Vede o paraíso terrestre, primeira
imagem do paraíso familiaar, vede o primeiro vínculo estabelecido pelo Criador
entre o homem e a mulhar, do qual o Filho de Deus encarnado diria um dia: Quod Deus conjunxit, homo non separet, “O
que Deus uniu, que o homem não separe”; porque, Jam non sunt duo, sed uma caro, “já não são duas, mas uma só carne”
(Mt 19, 6). Na união de nossos primeiros pais no jardim de delícias está todo o
gênero humano, todo o futuro das gerações, que encherão a terra e lutarão para
conquistá-la, e dela retirarão, com o suor do rosto , um pão molhado na
amargura da primeira culpa, nascida do fruto violado do Éden. Por que então
uniu Deus no paraíso o homem e a mulher? Não só para que guardassem o jardim de
felicidade, mas também, como diz o grande doutor Santo Tomás de Aquino, porque
pelo matrimônio estavam destinados à procriação, à educação da prole e à vida
familiar.
Indissolubilidade do matrimônio
Na unicidade do vínculo conjugal está impresso o selo da
indissolubilidade. É, decerto, um vínculo ao qual se inclina a natureza, mas
que não é causado necessariamente pelos princípios da natureza, porque se
realiza mediante o livre-arbítrio; embora a simples vontade dos contratantes
o possa contrair, não o pode desatar.
Diz-se isto não somente das bodas cristãs, mas em geral de todo matrimônio
válido que se tenha contraído sobre a terra com o mútuo consentimento dos
cônjuges. O “sim”, que brotava dos lábios pelo impulso do querer, vos enlaça
com o vínculo conjugal e ao mesmo tempo liga para sempre vossas vontades. Seu
efeito é irrevogável: o som – expressão sensível do consentimento – passa, mas
o consentimento se mantém firme, porque é um consentimento na perpetuidade do
laço, ao passo que um mero consentimento de vida temporária entre os esposos
não valeria para constituir o matrimônio. A união de vosso “sim” é indissolúvel,
de modo que não há verdadeiro matrimônio sem indissolubilidade, e não há
indissolubilidade sem verdadeiro matrimônio.
Casamento elevado a condição de sacramento
Elevai, pois, vossos pensamentos e lembrai-vos de que o matrimônio
não é só uma obra da natureza, mas eu para as almas cristãs é um grande
sacramento, um grande sinal da graça e de algo sagrado, a exemplo da união de
Cristo com a Igreja, Igreja com que Ele desposou e que conquistou com Seu
sangue, a fim de regenerar para uma nova vida, a vida do espírito, os filhos
dos homens que creem em Seu nome, nascidos nem do sangue, nem da concupiscência
da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus (Jo 1, 12-13). O símbolo e a luz
do sacramento que, por assim dizer, elevam acima da natureza a obra da
natureza, dão ao matrimônio uma nobreza de sublime honestidade que compreende e
reúne em si não só a indissolubilidade do sacramento, mas também tudo o que é
significado por ele.
Nulidade matrimonial
Mas, se a vontade dos esposos, quando já o tenham contraído,
não pode desatar o laço do matrimônio, poderá talvez fazê-lo a autoridade,
superior aos cônjuges, instituída por Cristo para a vida religiosa dos homens?
O vínculo do matrimônio cristão é tão forte que alcançou a plena estabilidade
com o uso dos direitos conjugais, de forma que nenhum poder do mundo, nem mesmo
o nosso, ou seja, o do Vigário de Cristo, é capaz de rompê-lo. É verdade que
podemos reconhecer e declarar que um matrimônio contraído como válido em
verdade era nulo, ou por vício essencial no consentimento ou por defeito de
forma substancial. Podemos também, em casos determinados e por razões graves,
dissolver matrimônios privados do caráter sacramental. Podemos, finalmente, se
há razão justa e proporcionada, romper o laço dos esposos cristãos, anular o “sim”
por eles pronunciado diante do altar, quando for provado que ele não foi
consumado pela prática da vida conjugal. Contudo, uma vez consumado, aquele
vínculo se conserva subtraído a qualquer ingerência humana. Por ventura Cristo
não restituiu à comunidade matrimonial a dignidade fundamental que lhe dera o
Criador na paradisíaca manhã do gênero humano, e a dignidade inviolável do
matrimônio uno e indissolúvel?
A redenção do homem e da mulher em Jesus Cristo
Jesus Cristo, Redentor da humanidade decaída, não veio para
suprimir, mas para cumprir e restaurar a lei divina; para confirmar – com mais autoridade
que Moisés, mais sabedoria que Salomão,e mais luz que os profetas – o que d’Ele
fora predito: que seria semelhante a Moisés, suscitado dentre o povo de Israel,
que a palavra do Senhor seria posta em seus lábio e que quem quer que não o
escutasse seria exterminado do povo de Deus (Dt 18, 15 e SS.; At 3, 22-23). Por
isso Cristo, no matrimônio, por sua palavra imperecível, elevou o homem e
reergueu a mulher, que os séculos anteriores haviam rebaixado à condição de
serva e o mais austero censor de Roma tinha equiparado a “uma natureza
desenfreada, um indômito animal”; Ele já havia, em si mesmo, reerguido não só o
homem, mas também a mulher, porque foi de uma mulher que Ele tomou Sua natureza
humana, fazendo-a Sua Mãe, bendita entre todas as mulheres, espelho imaculado
de virtudes e graças para todas as famílias cristãs pelos séculos, coroada nos
céus rainha dos anjos e santos.
Jesus e Maria, com sua presença, santificaram as bodas de
Caná; ali o divino Filho da Virgem realizou o primeiro milagre, como para
anunciar que iniciava Sua missão no mundo e o reino de Deus pela santificação da
família e da união conjugal, que é a origem da vida. Ali começou a elevação do
matrimônio, que seria alçado ao mundo sobrenatural pelos sinais visíveis e
exteriores, eu produzem a graça santificante, transformando-se em símbolo da
união entre Cristo e a Igreja (Ef 5, 32); união indissolúvel e inseparável, que
se nutre do amor absoluto e ilimitado que brota do coração de Cristo. Como
poderia o amor conjugal simbolizar tal união, se ele estivesse deliberadamente
limitado, condicionado, sujeito à dissolução, mera chama de amor temporário?
Não, elevado à excelsa e santa dignidade de sacramento, estampado e unido em
tão íntima ligação com o amor do Redentor e com a obra da Redenção, só pode ser
e afirmar-se indissolúvel e perpétuo.
Diante da lei de indissolubilidade, as paixões, limitadas e
reprimidas pela livre satisfação de seus apetites desordenados, procuraram em
todos os tempos e de todas as maneiras sacudir o jugo, enxergando nessa lei
apenas uma tirania dura e arbitrária que sobrecarregasse as consciências com um
peso insuportável, com uma escravidão que repugna os direitos sagrados da
pessoa humana. De fato, um vínculo pode às vezes constituir um fardo, uma
servidão, como as correntes que atam o prisioneiro, mas pode ser também um auxílio
poderoso, uma garantia segura, como a corda que ata o alpinista e seus
companheiros de subida, ou como os ligamentos que unem as partes do corpo
humano e o tornam livre e flexível em seus movimentos; e é este precisamente o
caso do vínculo indissolúvel do matrimônio.
A lei da
indissolubilidade aparecerá e se entenderá como uma manifestação do amor
materno e vigilante, sobretudo se vós considereis essa lei sob a luz
sobrenatural em que Cristo a colocou. Em meio às dificuldades, aos choques, e
às cobiças que talvez a vida semeie sob vossos passos, vossas duas almas,
porque estão unidas para sempre, não ficarão isoladas nem desarmadas: a
onipotente graça de Deus, fruto do sacramento, estará sempre com vossas duas almas,
para lhes compensar a fraqueza a cada
passo, para lhes aliviar os sacrifícios, para lhes dar força e consolo nas
provações, ainda que sejam árduas e longas. Se, para obedecer à lei divina,
fosse necessário repelir as lisonjas dos gozos terrenos, vislumbramos na hora
da tentação, e renunciar a “reconstruir a vida”, a graça ainda estaria ali para
recordar, com toda a força, os ensinamentos da fé: que a única vida verdadeira,
que nunca se deve expor ao perigo, é a vida do Céu, que asseguramos justamente
por meio das renúncias; renúncias que, como todos os acontecimentos da vida
presente, são provisórias e destinadas tão somente a preparar o estado
definitivo da vida futura, que será tanto mais feliz e luminosa quanto mais
corajosa e generosamente tenhamos aceitado as inevitáveis aflições dos caminhos
deste mundo.
Talvez estejais tentados a dizer: essas considerações são muito austeras, logo
agora que tudo nos sorri no caminho que se abre à frente. Por acaso nosso amor,
do qual temos tanta certeza, já não nos garante a indefectível união dos
corações?
Estimados filhos, recordai o aviso do salmista: “Se o Senhor
não toma a cidade sob sua guarda, é em vão que vela a sentinela” (Sl 126,1).
Mesmo a cidade da vossa presente felicidade, tão bela e fortificada, só Deus
pode mantê-la intacta com Sua lei e Sua graça. Todo o que é simplesmente humano
é demasiado frágil e precário para que se baste a si mesmo; mas a fidelidade
aos mandamentos de Deus assegurará a inviolável constância do vosso amor e de
vossa alegria pelas vicissitudes da vida.
Autor: Papa Pio XII
Livro: Casamento e família
Editora: Castela
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